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Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência


por Mariane Tavares

Maria Auxiliadora nasceu em Minas Gerais, em 1935. Morreu em São Paulo, em 1974. Viveu apenas 39 anos, e, foi no meio da vida, aos 19 anos, que iniciou sua atividade criativa.

Pintora autodidata, Maria Auxiliadora, mesmo com pouco tempo de vida, teve sua obra exposta tanto em âmbito nacional quanto internacional. No início da vida trabalhou como empregada doméstica – imagem que é muito retratada em seu trabalho – na zona rural. Oriunda de uma família de artistas, como Vicente Paulo da Silva, Cândido Silva, Conceição Aparecida da Silva e Efigênia Rosário da Silva, Maria Auxiliadora teve seus primeiros trabalhos expostos em feiras populares em Embu das Artes e na Praça da República. Comumente pintou sobre temas que lhe eram peculiares, como festas, danças e ritos afro-brasileiros e a morte.

Entre os dias 10 de março e 02 de junho de 2018, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateubriand – MASP, com curadoria de Adriano Pedrosa e Fernando Oliva, expôs 82 obras da artista sob o título “Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência”. Na atual conjuntura política do Brasil, a obra de Maria Auxiliadora é ressignificada ao tratar de temas que ainda são tão pertinentes à sociedade, como preconceito, violência, o feminino, entre outros. No ano de 2018, o MASP tem o projeto de dedicar seu programa às “Histórias e narrativas afro-atlânticas” e o iniciou apresentando obras de Maria Auxiliadora e Aleijadinho, e, também, fazendo parcerias com museus como o Tate, museu de arte moderna do Reino Unido.

A mostra no MASP teve o objetivo de dar um novo olhar para sua obra, extrapolando os limites que a crítica de arte da década de 70 lhe deram, ao enquadrá-la na categoria de arte popular, primitiva ou naïf. Os curadores subdividiram suas obras em seis eixos temáticos, eram eles: autorretrato; casais; interiores; manifestações populares; candomblé, umbanda e orixás; rural. Naturalmente, por pertencer a esta raça, a artista pintou muitas pessoas de pele negra, dando-lhes mais representatividade e protagonismo ao longo de sua produção, pois, de modo geral, na história da arte brasileira o negro é pouco retratado ou é retratado dentro da tipologia de escravo. Em uma tela muito simbólica, que se refere à educação no tempo da ditadura militar brasileira, intitulada “Mobral” (1971), o professor é representado como um homem negro, aquele que ensina, que tem o conhecimento e não como um subalterno. De acordo com Fernando Oliva “a exposição privilegiou trabalhos nos quais uma postura combativa e de recusa se manifesta de formas diversas, tanto no plano das próprias telas, com uma figuração inusitada, como na resistência da artista a aprender a pintar, afastando-se do elitismo do ‘bom gosto’”.

Quando Oliva diz que Maria Auxiliadora se afastou de técnicas elitistas, ele se refere às técnicas de bordado com carvão sobre as linhas e tinta guache, aos diferentes suportes que não se limitavam apenas às telas, mas cartão e chapas de madeira ou tinta acrílica. Suas composições eram com cores vibrantes e formas geométricas fixas, com pouco uso de perspectiva. Isso é muito perceptível em telas como “A preparação das meninas” (1972), onde a parede do banheiro é pintada com um padrão que intercala pequenos quadrados verdes e pretos, como se fossem azulejos, e o chão é diferente, com losangos pretos e brancos. Nesse mesmo quadro, o bordado com o qual Maria Auxiliadora começou sua carreira, aparece nas texturas em tecidos de renda que vestem algumas meninas e que cobre a que está se banhando. Além de unir tinta e bordado, outra técnica que a artista desenvolveu foi juntar tinta a óleo, mechas do próprio cabelo e uma massa plástica frequentemente usada para consertos domésticos, obtendo uma textura que dava volume às partes do corpo das pessoas retratadas nas telas; dessa maneira cabelos, nádegas e seios ganharam alto-relevo e as obras dão impressão de movimento e vivacidade. Essas técnicas são facilmente reconhecidas tanto na tela “A preparação das meninas” como em “Banhistas” (1973).

A obra de Maria Auxiliadora ganhou proporções internacionais em 1970, quando ela conheceu o crítico de arte Mário Schemberg, que comprou suas obras e levou para os Estados Unidos para presentear o cônsul Alan Fisher. Este, se interessou tanto pela obra da artista, que montou uma exposição individual com várias obras de Maria Auxiliadora, na Galeria do USIS (serviço de informação norte-americano) – Conjunto Nacional de São Paulo – e ali todas elas foram vendidas. Foi através de Alan Fisher que a obra da pintora brasileira chegou até o marchand e colecionador Werner Arnhold, e então foi exposta em galerias de arte da Europa e dos Estados Unidos, ganhando visibilidade internacional. A primeira vez que o MASP expôs obras de Maria Auxiliadora, foi em 1973, integrando a “Exposição Afro-brasileira de Artes Plásticas” e dois anos depois o diretor do museu à época – Pietro Maria Bardi – escolheu uma de suas obras para capa da coletiva “Festa de Cores” (1975) e mais uma vez sua obra entrou em circulação.

Com o apoio de Bardi, aconteceu o lançamento do livro “Maria Auxiliadora da Silva” sobre as pinturas da artista, obra publicada em quatro línguas: português, inglês, francês e alemão. Mas é só após a sua morte que o MASP realiza uma exposição individual, em 1981, com aproximadamente 70 pinturas. Depois dessa exposição, sua obra cai no esquecimento e trinta anos depois é recuperada pelo mesmo museu. A exposição de 2018 veio com a proposta de reacender a memória de Maria Auxiliadora, principalmente em tempos nos quais as discussões sobre a presença das mulheres nas artes, o feminismo negro e violência e desigualdade social na política brasileira estão efervescentes.

O catálogo da mostra contém 12 ensaios inéditos, de Adriano Pedrosa, Amanda Carneiro, Fernando Oliva, Isabel Gaspari, Karen Quinn, Lilia Schwarcz, Lucienne Peiry, Marta mestre, Mirella Santos Maria, Renata Bittencourt, Renata Felinto e Roberto Condutu; há também três textos de 1970 escritos por Mário Schenberg, um texto de 1975 escrito por Lélia Coelho Frota, outro escrito em 1977 por Pietro Maria Bardi e uma nota biográfica escrita por Artur Santoro. Para esta publicação foram impressas as 82 obras expostas no museu e atualmente é a obra mais completa sobre a pesquisa e a produção de Maria Auxiliadora.

Se a vida cotidiana de Maria Auxiliadora foi retratada do início ao fim de sua obra, a morte foi o tema mais aparente nos dois últimos anos de sua produção. Depois de descobrir que tinha câncer e passar por inúmeros tratamentos até esgotar seus recursos, a pintora desistiu de lutar pela vida e passou a dedicar-se integralmente à arte. A partir de então, começaram os autorretratos no leito de morte, como “Sem título (Última unção)” (1973), no qual ela está rodeada de familiares que aguardavam sua morte e lhe davam a extrema-unção. Também há quadros como “Velório da noiva” (1974), que faz parte do acervo geral do MASP, no qual ela é retratada como uma noiva cadáver que não pôde viver o matrimônio, mas ainda sim realizou um sonho. Outro quadro sobre a morte, diferente dos demais, traz a mensagem de que a arte transcende a morte, é “Autorretrato com anjos” (1972) no qual Maria Auxiliadora se mostra diante de um cavalete, sublime, rodeada por anjos que seguram suas telas, pinceis e tubos de tinta para que sua atividade criadora não cesse.

O complemento do título da exposição “Vida cotidiana, pintura e resistência” é adequado como um percurso panorâmico da obra de Maria Auxiliadora, porque o debate que desperta é que “o pessoal é político”. Diante desse panorama, nos perguntamos: os subúrbios da cidade de São Paulo que aparecem nas telas são tão diferentes dos subúrbios de agora? E se não são, isso tem a ver com as diferentes entre as classes sociais? A obra da artista ganha mais força na contemporaneidade porque a história da arte e as coleções de arte dos principais museus do mundo são dominadas por representações eurocêntricas e, a isto, somam-se os comportamentos conservadores tanto das pessoas que têm frequentado os museus brasileiros, como da mídia – vide o cancelamento da exposição “Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira” e a performance “La bete”, de Wagner Schwartz em 2017. Sendo assim, a posição do MASP, ao desenvolver um projeto como o “Histórias e narrativas afro-atlânticas”, é uma atitude política, porque coloca o negro como sujeito tanto da criação, como da representação da obra

Em Maria Auxiliadora isso pode ter no mínimo dois desdobramentos. O primeiro refere-se à ideia de resistir à morte. Se no Brasil os índices de violência contra jovens e mulheres negras são 70% maiores do que com jovens e mulheres brancas, estar presente é uma maneira desse grupo sobreviver na obra e ocupar espaços que antes não ocupavam, como o museu. O segundo está diretamente ligado “ao meio da vida”, esse momento que barthesianamente corresponde ao tempo de um acontecimento significativo que faz o artista tomar consciência de sua condição e mortalidade. Descobrir-se artista auto-didata mudou radicalmente a vida de Maria Auxiliadora, de empregada doméstica às exposições nacionais e internacionais. Sua resistência à morte confirma que “o meio da vida”, independente de quanto tempo dure, é o período no qual o artista ressignifica sua vida e obra, tentando não se entregar à dor da morte que estava por vir e à repetição de uma história que não cessa.

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